17.4.06

Proposta de leitura: 1613

(...)
"Deixai-me ir em busca dela e prometo-vos que, um dia, voltaremos a cruzar ferros, em vossa honra.
-- Se é por uma donzela, seja! Aliás, também confesso que tenho o braço muito dorido por causa da vossa estocada e que o sol da manhã me deixou zonzo. Viverei para o dia em que voltemos a enfretar-nos.
-- Vossa graça?
-- Peter Cornellius!
Ambos embainharam as espadas e inclinaram-se em respeito mútuo, o holandês retirando o chapéu de feltro enfeitado com plumas, o português fazendo o mesmo gesto apenas com a mão. D. Manuel olhou os prisioneiros e fez um gesto de desalento. Ainda lhe passou pelo espírito um acto desesperado para os salvar. Calculou distâncias e contou os guardas, que já começavam a olhar para ele e Peter Cornellius, como que à espera de um comando seu para saltarem sobre ele. Não conseguiria sair dali sem lutar e não podia fazer nada pelos seus. Ainda se olharam por momentos e, subitamente, o holandês teve um gesto surpreendente. Reitrou um pequeno livro do seu colete manchado de sangue e entregou-o a D. Manuel, dizendo:
-- Eis um manual de esgrima que muito estimo. Foi-me oferecido pelo meu mestre. Entrego-vos como sinal do compromisso que aqui assumimos, mas também em sinal de respeito do combatente que resistiu com todas as suas forças ao nosso ataque. E, ainda, porque quero que estejais de igual para igual quando nos voltarmos a encontrar.
-- Não posso aceitar...
-- Tendes de aceitar! -- afirmou com tal veemência que impediu qualquer recusa do português. -- É um compromisso que tendes para comigo. Havera um duelo e as regras estão aí! Boas tardes, D. Manuel! Quanto aos prisioneiros, não tenhais receio; serão bem tratados, dou-vos a minha palavra. Agora, ide em busca da vossa donzela!
E voltaram a saudar-se respeitosamente, D. Manuel guardando o pequeno livro, entalando-o entre o cinto e as costas molhadas de suor.
Ao longe, um dos feridos portugueses, deitado no chão, a tudo assistira com rancor e raiva surda, sem conseguir ouvir as palavras deste encontro, que, ali de longe, e com tantas cortesias, não parecia ser conversa de inimigos. Para Gaspar, que desde a morte do «Zarolho» se tinha tornado ainda mais azedo e implicativo, era nítido que D. Manuel acabara de receber os dinheiros de Judas. O seu ferimento era superficial, apesar de ter perdido muito sangue. Olhou para o curral onde estava e descobriu um espaço na vedação por onde podia caber o seu corpo. Começou a arrastar-se nessa direcção e aos poucos foi arquitectando a fuga."
Pedro Vasconcelos - 1613. Oficina do Livro, Lisboa, 2005
(pag. 134-pag.135)

3 comentários:

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