Cartas de Díli IV
FRUSTRAÇÕES
"Hoje não estou particularmente bem disposta.
"Hoje não estou particularmente bem disposta.
Os acontecimentos destes últimos dias em Díli não deixam espaço para nenhum vislumbre de boa disposição.
Ainda tenho nos ouvidos o ressoar dos tiros trocados durante a noite e o princípio da manhã.
Partiram-me os vidros do carro. Escapou um vidro! Ouvi o barulho da sala onde estava. Mal foi possível, assim que desapareceram os efeitos do gás lacrimogéneo, vim para a rua. Parecia uma tonta, sem saber o que fazer. Um jovem, numa motorizada, aproximou-se e aconselhou-me a afastar-me daquele lugar, sugestão a que obedeci sem reservas, sentando-me por cima dos vidros partidos.
Não me lembro de sentir medo. Talvez alguma emoção por estar a viver algo de novo, de fazer parte da difícil história do meu país. E, claro que me apercebi da minha pequenez humana.
Dei comigo a pensar que aquilo que eu vira vezes sem conta em imagens da televisão, no tempo da ocupação indonésia, estava a acontecer-me, a mim, que fora sempre e apenas uma observadora privilegiada pela distância e pelo conforto de viver num país em paz! Paz!
Assisti ao "salvamento" do Presidente do Parlamento Nacional e meu colega da turma C da Faculdade de Direito, por polícias, fortemente armados, de metralhadora em punho que, enquanto o diabo esfregava um olho, rodearam e empurraram para fora da sala o estupefacto senhor provavelmente tão surpreso quanto os outros alunos.
Eu até sou uma pessoa optimista quanto ao futuro deste meu país, mas confesso que estou bastante decepcionada com o aproveitamento estúpido de uma crise que não foi resolvida a tempo porque quem de direito ou não se debruçou seriamente sobre as suas razões ou entendeu que o melhor era deixar andar e ver onde paravam as modas; e estas, claro, pararam numa demonstração de violência e vandalismo gratuitos por parte de jovens. Muitos jovens talvez descontentes pela falta de objectivos, certamente desempregados, jovens que passam os dias sentados nos muros do hotel Resende incendiado a 4 de Dezembro de 2002 olhando para o ar, para nada, à espera de uma oportunidade para agir, para chamar a atenção.
Foi o que fizeram ontem, juntamente com os Colimau, um grupo violento e organizado que tomou conta da manifestação dos ex-militares.
Passaram por entre os agentes de uma Polícia, menina bonita e bem tratada, bem alimentada e tão bem equipada que espanta o mais comum dos mortais por que não terá conseguido deter os manifestantes numa zona que, à priori, deveria estar bem guardada, a do Governo e Parlamento Nacional.
Os acontecimentos de ontem põem muita coisa em causa, particularmente a credibilidade deste país junto da comunidade internacional e da capacidade dos seus líderes políticos para resolver bem os milhentos pequenos e grandes problemas que vão surgindo.
Recordo a celeuma criada em volta da restritiva lei sobre as manifestações, que limitava o âmbito territorial em que estas poderiam desenrolar-se a uma distância mínima de 100 metros dos edifícios públicos…
Recordo que ontem mesmo se formou o fórum dos empresários que congrega a fina flor dos empresários privados e que, com o beneplácito do governo, surgiu para captar investidores estrangeiros. Alguém quererá vir investir aqui?
De acordo com a dramática comunicação ao país do Presidente da República via rádio e TV - em que este não poupou críticas ao ministro da Defesa, ao chefe de Estado-maior general das FDTL - o Governo agiu mal, seguiu os seus assessores internacionais. Pormenores importantes para o germinar de um surto xenofóbico!Ainda por cima, todos esperavam que as palavras do Presidente viessem acalmar as hostes!
A situação que se arrastava desde Fevereiro não se afigurou suficientemente grave de forma a que alguns elementos dos órgãos de soberania de Timor-Leste cancelassem as suas visitas aos estrangeiro. Xanana Gusmão esteve fora duas semanas, assistiu à tomada de posse de Cavaco Silva, falou na Comissão de Direitos Humanos; o PM e o MNEC também andaram por fora.
Todos tinham conhecimento desta última manifestação. Não obstante, o ministro da defesa e o brigadeiro-general mantiveram-se no estrangeiro em visita oficial.
Durante uma semana – a exemplo do que aliás acontece sempre que há reuniões, seminários, conferências, palestras ditas importantes em prol da capacitação dos timorenses e do desenvolvimento do país, em que a cidade fica em autêntico estado de sítio e quem quer movimentar-se perde tempo e paciência à procura de um caminho que o leve ao destino – as ruas foram cortadas, os sentidos proibidos alterados, as viaturas revistadas… tudo em nome da segurança, da estabilidade, a bem do povo, do seu futuro, do fim da sua pobreza, do emprego, da educação: tudo pormenores, pétalas de flores imaginárias que compõem o ramalhete da dignidade da pessoa humana.
Quando começaram as movimentações em frente ao Parlamento e à Universidade Nacional, eu estava na sala, atenta à explicação do professor que falava – veja-se a coincidência! – justamente sobre a dignidade da pessoa humana! Sem ser no artigo 1º da Constituição, onde mora ela, a dignidade, aqui em Timor-Leste?
A defesa da dignidade de uns esbarra sempre no atropelo da do vizinho…Restringem-se facilmente os direitos em defesa da dignidade ainda que isso ponha em causa a dignidade de todo um povo. Disso é exemplo a Comissão Verdade e Amizade que tanto tem dividido a sociedade timorense. Porque, se nós não conseguimos sequer arrumar a casa, dentro de portas, aceitarmos e reconciliarmo-nos com as nossas diversas nuances; se fomentamos as divisões entre Lorosae e Loromonu; se nós nem conseguimos levar a bom termo negociações com meia centena de manifestantes nem dissuadi-los da leviandade da sua actuação, temos alguma necessidade de estar já a fabricar uma mal sustentada amizade com a poderosa Indonésia? Perguntam os sobreviventes dos massacres, os familiares dos que morreram "então e, connosco, como é? A amizade vai ser aprofundada em detrimento da nossa dignidade, do nosso sofrimento". A quem serve e para que serve esta amizade?
E depois é a respeitabilidade que todos exigem, a estabilidade da "Nação", em que todos dizem apostar sem directa correspondência na actuação de quem fala em seu nome.Palavras, palavras, palavras que o vento quente leva!
O povo grita, apela na rádio, sempre que lhe dão oportunidade, por paz, implora aos "líderes" que conduzam as coisas de forma a que não haja mais sofrimento.
Díli está vazia. As ruas estão desertas. O Povo, amedrontado, uma vez mais refugiou-se nas igrejas, nas embaixadas, nas montanhas. É preciso uma outra manifestação popular para que se entenda de uma vez por todas que é preciso haver paz para que o país evolua?
Todos saímos a perder. Não saberemos nós viver em paz? Será preciso darmos o ar de que apenas nos portamos bem, dependentes de alguém mais poderoso, de uma entidade externa, logo superior e com receio de uma bota a esmagar-nos?
Gostaria que o governo fosse mais flexível, menos arrogante, mais dialogante, mas também mais firme; que os timorenses se habituassem a viver em paz e gozassem a independência conseguida à custa de tanto sofrimento.
Gostaria que desaparecessem de vez as divisões certamente existentes mas desnecessariamente acarinhadas entre Lorosae e Loromonu.
Somos todos timorenses, porque sendo de Loromonu vivem em Lorosae ou vice-versa, porque os seus antepassados são de uma ou de outra zona do país… E, depois, com esta divisão, onde se situa a zona central de Timor-Leste? E Ataúro, Oécussi e Jaco?
Já houve tempo em que muitos foram contra a soberania portuguesa, já foi tempo em que tudo acontecia por culpa da UDT e da FRETILIN; já passou o tempo da contestação à Indonésia.
Quando ainda mal curadas estão as feridas criadas à volta da fabricada animosidade entre mestiços e naturais puros (haverá alguém que seja puro?), temos, de novo, Lorosae, Loromonu. Um dia, quando isto tiver passado de moda ou se tiver sido resolvido será o bairro do Farol contra o bairro de Colmera, ou de Bidau contra o de Lecidere. Depois será vizinho contra vizinho, irmão contra irmão…
Haverá alguém que esteja interessado nisto para Timor?"
Maria Ângela Carrascalão
Díli, 29 de Abril de 2006 in Torreão Sul
1 comentário:
Really amazing! Useful information. All the best.
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