12.5.06

EM LOUVOR DOS TRABALHOS MANUAIS (cont.)

Poderia o menino dizer, se para tanto lhe chegasse a língua: faço alguma coisa com as mãos, alguma coisa que imaginei, e logo me sinto existir.
Toda a criança ficará mutilada na sua inteligência, como futuro homem, se, na altura própria, não for educada na base dos trabalhos manuais. A destreza manual lhe dará também, quando homem, destreza intelectual, argúcia, subtileza, agilidade mental: Na medida em que opera concretamente, em volume, em arquitectura, em funcionalidade, a criança está formando a sua personalidade. Sente-se original. Autoconfiante. Afirmativa. Construtiva, até mesmo quando... destrói. O destruir, nela, em muitos casos, é, um produto da curiosidade de saber como as coisas são por dentro. É a pesquisa de segredos que ela sente necessidade de iluminar, para também fazer obra de conta própria. A criança, construindo e destruindo, está sugerindo às pessoas crescidas e aparecidas uma pedagogia muito diferente do psitacismo em que, habitualmente, é deformada (2). Está-nos dando a preciosa lição que nós, por preguiça pedagógica, teimamos em não aprender, para mal da própria criança, nosso, e da sociedade. A criança, teimando em construir e destruir, está julgando e vingando as nossas asneiras de pedagogizantes abstractos, que desprezam o grande mestre que é a própria criança.
A criança não é só espírito - é espírito e corpo, e no corpo mãos e pés (especialmente as mãos) têm papel primacial na vida funcional. Automutila-se todo aquele que, a par do espírito, não fizer também uso dos pés e mãos. Já o filósofo disse que o homem é inteligente porque tem mãos e as usa (3). São impertinentes os pedantes crescidos. Mas ainda mais o são as crianças ao papaguearem simplesmente palavras, com ares de suficiência, quando o agradável seria vê-Ias mais a fazer do que a dizer. Fazer que vai à frente diz duas vezes, porque diz concretamente, insofismàvelmente.
O artista de amanhã está em esboço na criança que, hoje, é o artífice, o manualizador que se trata tu cá tu lá com as coisas concretas, transformando-as, modelando-as, dando-lhes uma arquitectura a três dimensões.


(2) - Quando o palavreado, e só palavreado, entra pela porta da aula, sem que o ensino tenha feição concreta e activa, é certo e sabido ql1e a atenção do aluno voa para parte incerta, através da janela da imaginação.
'(3) - Em trabalhos manuais a ambidextridade deve ser a norma. Ambas as mãos devem ser sábias na execução da obra. Não terá aqui cabimento o dito evangélico de que a direita deve ignorar o que faz a esquerda.. .A mão esquerda tem sido desprezada, em favor da direita. Pois era já tempo de as pôr em regime de igualdade. Tudo se tem feito pela direita, como se a esquerda nascesse no signo do não presta, do não merece sombra de consideração. Haja democracia nas mãos. Uma senhora, e outra escrava, não ! Destra uma, conhestra outra, não! Ou há moralidade, ou comem as duas...
Cruz Malpique - Em louvor dos Trabalhos Manuais. Labor, Revista do Ensino Liceal, N.º 301, Aveiro, Abril de 1972.

8 comentários:

António Conceição disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
António Conceição disse...

Pois eu, ainda hoje tremo ao pensar nos trabalhos manuais.
Ainda recordo os dedos feridos com a goiva, a abrir o linóleo, para compor o baixo relevo onde havia de passar a tinta que haveria de imprimir o desenho no papel. Todos os meus colegas, fizeram a sua impressão a tinta, menos eu, que a fiz a sangue.
Ainda recordo o prazo para a entrega do trabalho (sobre o tema dos transportes) a esgotar-se e eu sem saber o que fazer. Os meus colegas já tinham as suas caravelas, os seus carros de corrida e os seus foguetões quase feitos. E eu... nada. Preocupado, olhos no chão, derrotado, chutei sem querer um ramo de árvore quebrado no chão. O céu iluminou-se. Apanhei o pau e escavei-o com um canivete. No dia aprazado, entreguei a coisa sob o pomposo título de "piroga primitiva". Tive "MAU". Foi a melhor nota que consegui a Trabalhos Manuais.

LdS disse...

Parabens por desencantarem textos do Prof.Cruz Malpique. Era um homem extraordinário, na sua compreensão das coisas. Mesmo quando mal entendido pelos alunos, "surfava" sempre as ondas da aula com a classe de uma cultura superior. Não me recordo de o ter visto agastado. E este texto é bem dele.

Anónimo disse...

Muito obrigado pelos vossos comentários, amigos. Irei publicá-los, se não me levarem a mal.
Abraço,
Ângelo

Anónimo disse...

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