Timor: de exemplo para o mundo a sonho adiado?
Com tudo aquilo que se tem passado em Timor recentemente, passará aquela jovem nação de exemplo de sucesso no âmbito das acções de paz e desenvolvimento das Nações Unidas a um sonho frustrado? Não quero acreditar nisso, por razões que explicarei, das quais a primeira fica já explicitada: sou desde o início dos anos 90 um defensor da independência de Timor (antiga colónia portuguesa com uma história e identidades próprias), quando ainda muitos fechavam os olhos ao genocídio que, desde a invasão em 1975, a Indonésia perpetrava contra aquele pequeno e indefeso povo, apoiada sobretudo pelos Estados Unidos e pela Austrália. Em 1999, depois de um acordo entre Portugal e a Indonésia, sob a égide da ONU, que lhes dava a possibilidade de escolherem entre uma autonomia na Indonésia ou a independência, foram muitos os povos que estiveram ao seu lado (com os portugueses a mobilizarem-se de forma inédita), especialmente quando escolheram ser livres e foram massacrados numa estratégia maquiavélica dos militares indonésios com a conivência, até à última hora, de velhos comparsas.
Hoje, ao ver o que se passa na Ilha do Crocodilo, sou obrigado a recordar essas antigas contrariedades a que estiveram sujeitos. Porém, actualmente há muitos fazedores de opinião (inclusive portugueses) que defendem a tese de que o problema nada tem que ver com agentes externos e que a estratégia dos timorenses é sempre a mesma: não assumem a responsabilidade pelos seus problemas e disparam num qualquer inimigo externo. Nada mais ridículo!
Dir-me-ão que a actual situação é diferente porque o problema agora é entre timorenses apenas – de acordo. Mas é preciso ver que não falta quem se esteja a aproveitar dos problemas normais, tendo em conta as circunstâncias históricas, deste Estado jovem e incipiente, para tirar daí benefícios.
Timor passou por mais de 400 anos de colonização portuguesa e por 24 de opressão indonésia. Quer num quer noutro período não houve desenvolvimento estruturado, não houve formação de quadros técnicos, não houve educação, não se deu aos timorenses capacidade de decisão dos seus destinos! Agrava-se o cenário com toda a violência física e psicológica arquitectada para aniquilar a identidade e desejos independentistas dos timorenses. Após o referendo, com a colaboração das nações “amigas”, sob o chapéu internacional da ONU e dos seus profissionais da solidariedade, começou a difícil tarefa de construir um Estado a partir do zero, nomeadamente recrutando e formando os futuros quadros da administração pública, um exército, uma polícia, um governo transitório, e definindo as linhas orientadoras que traçariam a forma do futuro país. A tarefa, dados múltiplos condicionalismos, não era fácil. Terá havido bons exemplos da ajuda externa, com toda a certeza, mas houve bem mais ingerências excessivas, descontextualizadas e sem respeitar a vontade local, além de milhões e milhões de dólares (grande parte com sotaque português) deitados ao lixo em elevados vencimentos de funcionários que nada fizeram ou fizeram muito mal – nada de novo, diga-se de passagem. A frágil saúde do país recém formado, quando foi abandonado pelas Nações Unidas, contra a maioria das opiniões, incluindo a do Secretário Geral, sobretudo no que diz respeito à segurança interna, deu nisto. Não sendo esta a causa de todos os actuais problemas, certamente responsabilidade dos próprios timorenses, foi pelo menos uma boa “ajuda”.
Tendo vivido 3 anos em Timor, numa intensa relação com as pessoas (locais e estrangeiros), pude, além do que já sabia de leituras antigas, constatar as dificuldades inerentes à criação de um país livre, democrático e desenvolvido. Um dos países mais pobres do mundo, senão o mais pobre, procurando a sua identidade, com múltiplas divisões internas (mas não simplistas entre Lorosae e Loromonu, como agora se quer fazer crer; está criado um novo problema), que muita gente quer explorar para reinar.
Para a Austrália – e seus amigos –, que considera Timor o seu backyard, o problema de Timor é o seu primeiro-ministro Mari Alkatiri, que, nas palavras do seu homólogo, não sabe governar!
O governo – Mari já o admitiu – foi autista, deixou crescer um problema real dentro das forças de segurança, nem sempre ouviu o povo como devia, é um facto. Cometeu, entre outros, o erro grave de desvincular das FDTL cerca de um terço dos militares, abrindo, a par com o desemprego jovem e a pobreza generalizada, uma enorme brecha na sociedade timorense. A Fretilin, partido histórico no poder (ganhou as eleições com 54% dos votos em 2001), tem esquecido que na cultura timorense não funciona nada bem a máxima “the winner takes it all”. Os timorenses, e bem, não gostam que se ignore o perdedor, para não dizer que não gostam de modelos em que há perdedores, preferindo que todos saiam vencedores, contando com o contributo de todos para a construção dos seus ideais. Mas será isto suficiente para explicar o que se está a passar? Não!
Além disso, há eleições democráticas no próximo ano – porque não esperam os que querem opções diferentes? Porque há interferência externa – basta ver a campanha de intoxicação na imprensa australiana afecta ao governo – procurando usufruir da instabilidade ou instigando-a. O maior interessado é a Austrália e a sua política de polícia da região, assim como de domínio sobre os recursos naturais nela inscritos, caso do petróleo timorense – tudo isto com o apoio dos americanos! Não é despicienda para o caso a excelente negociação sobre a exploração do petróleo que Mari Alkatiri conduziu com sucesso, bem mais favorável aos interesses timorenses do que estava previsto, nem a sua clara opção pelo Português como língua oficial, criadora de identidade própria, nem ainda a sua não subserviência a interesses externos, venham de onde vierem. Curiosamente, o governo que acusam de não saber governar, ainda em Abril foi elogiado pelo Presidente do Banco Mundial: «Em poucos anos, o povo de Timor-Leste construiu das cinzas e destruição de 1999 uma economia funcional e uma vibrante democracia ». Do mesmo modo, a Comissão Europeia acabou de atribuir, a 19 de Maio, para o desenvolvimento das zonas rurais, 18 milhões de euros, tendo em conta que «desde a independência, em Maio de 2002, Timor-Leste tem feito progressos notáveis com vista à construção de um país forte e bem governado». Como diria um notável aveirense, «e esta hein?»
Para concluir, aquilo que mereceria uma abordagem bem mais completa, impossível pela escassez de espaço, pode dizer-se que o povo de Timor tem razões de queixa diversas (cabendo parte à governação), mas que só com a exploração externa das suas fragilidades e cobertura encapotada a revoltosos e bandidos comuns, somadas a silêncios e conivências internas, pode acontecer aquilo que nos é dado ver. É triste, porque como pude verificar no terreno – ninguém me disse -, os timorenses são um povo bom e não merecem isto!
Ângelo Eduardo Ferreira
Hoje, ao ver o que se passa na Ilha do Crocodilo, sou obrigado a recordar essas antigas contrariedades a que estiveram sujeitos. Porém, actualmente há muitos fazedores de opinião (inclusive portugueses) que defendem a tese de que o problema nada tem que ver com agentes externos e que a estratégia dos timorenses é sempre a mesma: não assumem a responsabilidade pelos seus problemas e disparam num qualquer inimigo externo. Nada mais ridículo!
Dir-me-ão que a actual situação é diferente porque o problema agora é entre timorenses apenas – de acordo. Mas é preciso ver que não falta quem se esteja a aproveitar dos problemas normais, tendo em conta as circunstâncias históricas, deste Estado jovem e incipiente, para tirar daí benefícios.
Timor passou por mais de 400 anos de colonização portuguesa e por 24 de opressão indonésia. Quer num quer noutro período não houve desenvolvimento estruturado, não houve formação de quadros técnicos, não houve educação, não se deu aos timorenses capacidade de decisão dos seus destinos! Agrava-se o cenário com toda a violência física e psicológica arquitectada para aniquilar a identidade e desejos independentistas dos timorenses. Após o referendo, com a colaboração das nações “amigas”, sob o chapéu internacional da ONU e dos seus profissionais da solidariedade, começou a difícil tarefa de construir um Estado a partir do zero, nomeadamente recrutando e formando os futuros quadros da administração pública, um exército, uma polícia, um governo transitório, e definindo as linhas orientadoras que traçariam a forma do futuro país. A tarefa, dados múltiplos condicionalismos, não era fácil. Terá havido bons exemplos da ajuda externa, com toda a certeza, mas houve bem mais ingerências excessivas, descontextualizadas e sem respeitar a vontade local, além de milhões e milhões de dólares (grande parte com sotaque português) deitados ao lixo em elevados vencimentos de funcionários que nada fizeram ou fizeram muito mal – nada de novo, diga-se de passagem. A frágil saúde do país recém formado, quando foi abandonado pelas Nações Unidas, contra a maioria das opiniões, incluindo a do Secretário Geral, sobretudo no que diz respeito à segurança interna, deu nisto. Não sendo esta a causa de todos os actuais problemas, certamente responsabilidade dos próprios timorenses, foi pelo menos uma boa “ajuda”.
Tendo vivido 3 anos em Timor, numa intensa relação com as pessoas (locais e estrangeiros), pude, além do que já sabia de leituras antigas, constatar as dificuldades inerentes à criação de um país livre, democrático e desenvolvido. Um dos países mais pobres do mundo, senão o mais pobre, procurando a sua identidade, com múltiplas divisões internas (mas não simplistas entre Lorosae e Loromonu, como agora se quer fazer crer; está criado um novo problema), que muita gente quer explorar para reinar.
Para a Austrália – e seus amigos –, que considera Timor o seu backyard, o problema de Timor é o seu primeiro-ministro Mari Alkatiri, que, nas palavras do seu homólogo, não sabe governar!
O governo – Mari já o admitiu – foi autista, deixou crescer um problema real dentro das forças de segurança, nem sempre ouviu o povo como devia, é um facto. Cometeu, entre outros, o erro grave de desvincular das FDTL cerca de um terço dos militares, abrindo, a par com o desemprego jovem e a pobreza generalizada, uma enorme brecha na sociedade timorense. A Fretilin, partido histórico no poder (ganhou as eleições com 54% dos votos em 2001), tem esquecido que na cultura timorense não funciona nada bem a máxima “the winner takes it all”. Os timorenses, e bem, não gostam que se ignore o perdedor, para não dizer que não gostam de modelos em que há perdedores, preferindo que todos saiam vencedores, contando com o contributo de todos para a construção dos seus ideais. Mas será isto suficiente para explicar o que se está a passar? Não!
Além disso, há eleições democráticas no próximo ano – porque não esperam os que querem opções diferentes? Porque há interferência externa – basta ver a campanha de intoxicação na imprensa australiana afecta ao governo – procurando usufruir da instabilidade ou instigando-a. O maior interessado é a Austrália e a sua política de polícia da região, assim como de domínio sobre os recursos naturais nela inscritos, caso do petróleo timorense – tudo isto com o apoio dos americanos! Não é despicienda para o caso a excelente negociação sobre a exploração do petróleo que Mari Alkatiri conduziu com sucesso, bem mais favorável aos interesses timorenses do que estava previsto, nem a sua clara opção pelo Português como língua oficial, criadora de identidade própria, nem ainda a sua não subserviência a interesses externos, venham de onde vierem. Curiosamente, o governo que acusam de não saber governar, ainda em Abril foi elogiado pelo Presidente do Banco Mundial: «Em poucos anos, o povo de Timor-Leste construiu das cinzas e destruição de 1999 uma economia funcional e uma vibrante democracia ». Do mesmo modo, a Comissão Europeia acabou de atribuir, a 19 de Maio, para o desenvolvimento das zonas rurais, 18 milhões de euros, tendo em conta que «desde a independência, em Maio de 2002, Timor-Leste tem feito progressos notáveis com vista à construção de um país forte e bem governado». Como diria um notável aveirense, «e esta hein?»
Para concluir, aquilo que mereceria uma abordagem bem mais completa, impossível pela escassez de espaço, pode dizer-se que o povo de Timor tem razões de queixa diversas (cabendo parte à governação), mas que só com a exploração externa das suas fragilidades e cobertura encapotada a revoltosos e bandidos comuns, somadas a silêncios e conivências internas, pode acontecer aquilo que nos é dado ver. É triste, porque como pude verificar no terreno – ninguém me disse -, os timorenses são um povo bom e não merecem isto!
Ângelo Eduardo Ferreira
Texto escrito há 3 semanas para o jornal O Aveiro
2 comentários:
Obrigada Ângelo. Não deixes de escrever, de partilhar as tuas impressões. Conheces, compreendes e amas este povo; é preciso que continues a escrever. Vemos esta crise com a nossa estrutura mental ocidental que é tão diferente da Timorense! as palavras que escolhemos para relatar o que lá se passa são palavras da nossa língua portuguesa, nem sempre se ajustam aquela realidade, aquele sentir timorense: falamos em crise, em etnias, em desemprego, em vencedor e vencido... o que é que isso siginifa lá em Timor? são palavras portuguesas que não conseguem explicar situações vividas em Timor.
Obrigada.
Muito obrigado. Um beijo grande!
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