Timor-Leste: textos importantes
Timor-Leste: Deslocados de Dili sofrem ainda, antes de tentar esquecer
Por Rui Boavida, enviado da Agência Lusa Díli, 31 Mai (Lusa) - Um dia após Xanana Gusmão chamar a si o controlo das Forças Armadas, Díli amanheceu hoje quase igual - colunas de fumo negro a cortar o céu azul, cheiro a queimado e multidões a encher os centros de acolhimento. O mundo não muda de um dia para o outro, e muito menos na capital timorense. Existem ainda na cidade, pelos números que as Nações Unidas hoje divulgaram, cerca de 70 mil deslocados internos, a viver em campos de acolhimento improvisados, onde falta água, comida e, acima de tudo, paz e ordem. Muitos esperam que a decisão que o Presidente da República comunicou à Nação na terça-feira, de chamar a si as competências de segurança e ordem pública, seja o primeiro passo para a normalidade. Há gente a dormir, gente sentada, gente a fazer tempo, gente a limpar o pedaço de rua onde vive agora, onde quer que haja um resto de uma instituição, de uma ordem, de uma autoridade. Nas igrejas e em frente à missão das Nações Unidas, à porta das embaixadas e no Porto, no parque de estacionamento do Aeroporto e nos locais onde se concentram forças de intervenção internacional da Austrália, de Nova Zelândia e da Malásia. E as crianças, sempre as crianças, algumas que não têm mais de cinco ou seis anos, a carregar como gente crescida os sacos de arroz, os bens que as famílias conseguem ainda trazer das casas que deixaram para trás, os garrafões de cinco litros de água que enchem onde quer que possam, como à porta do Hotel Timor, onde um cano corre a céu aberto para regar um pequeno canteiro de flores. Micató Ribeiro, uma dentista com cerca de 30 anos, é uma entre a multidão dos 70 mil deslocados. Acordou hoje pela quinta manhã consecutiva debaixo do que chama "a tenda", um lençol de plástico amarelo entre dois carros, na estrada do aeroporto. É aí que tem passado os dias com a família, entre as quais seis mulheres e quatro crianças, a mais nova de colo. A rotina dos Ribeiro é sempre a mesma. A cada manhã, fazem cerca de seis quilómetros, para tomar banho e lavar os dentes a uma casa segura, onde sabem que não serão atacados e onde existe água canalizada. Depois, disse Micató, "passamos o dia à espera, sem fazer nada." "Desenrascamo-nos para encontrar comida e água, mas normalmente acabamos por comer massas instantâneas. Vamos a pé buscar arroz aos centros de distribuição e compramos comida quando encontramos alguma loja aberta. Mas com os conflitos o dinheiro já falta, porque não há trabalho, e sem trabalho não há ordenado", disse Micató. Se hoje se sente já o aliviar de alguma tensão, com lojas, bombas de gasolina e pequenos mercados e rua a reabrir timidamente, as rotinas dos deslocados de Díli são as mesmas dos últimos dez dias. Durante o dia, homens, mulheres e crianças vão às casas que abandonaram trazer o que podem para os campos de acolhimento. à noite, antes de Díli se esvaziar de gente e deixar as ruas para os cães, os jipes abandonam o centro carregados, da mala ao tejadilho, com malas, sacos de arroz, sacas de roupa, electrodomésticos, cadeiras de plástico, as coisas da casa. Os camiões de caixa aberta saem cheios, a abarrotar de gente, da cidade. Voltam vazios. As diversas ruas fechadas pelos grupos de civis armados com cones de sinalização ou troncos de árvore, deixam uma mensagem clara - aqui já arderam casas e é provável que ardam mais. Em quase todos os bairros há ruas fechadas: Comoro, Delta, Vila Verde, Bairro Pité, Taibessi, Fatu Hana, Becora. Os amigos de Januário Ximenes chamam-lhe "Cassano." Tem 25 anos, é estudante de electrotecnia e é mais um dos timorenses que anda a "fintar" o destino. "Quando passo por uma aflição, parece que a próxima é ainda mais dura", diz Cassano, na praia da baía de Díli, onde lê os restos de um dicionário de inglês, o único livro que conseguiu salvar depois de um grupo de civis armados ter incendiado, na quinta-feira, a casa que divide com os seis irmãos em Becora. A família que lhe resta, depois da morte dos pais em 1999. Cassano e a família viviam em Baucau, a cerca de 150 quilómetros de Díli, mas vieram para a capital quando os pais morreram durante os conflitos com as milícias que os indonésios armaram quando se retiraram de Timor-Leste. "Ficaram doentes na altura e não tínhamos dinheiro nem meios para os levar ao hospital. Morreram ali", disse o jovem, que dorme agora no porto de Díli, agarrado à mochila e à roupa que tem no corpo, o pouco que conseguiu salvar da casa em chamas. Mas Cassamo não desiste. Mesmo sem dinheiro quer continuar a estudar, sonha agora com uma bolsa de estudo que lhe permita dar algum dinheiro aos irmãos, o mais novo de oito anos, e tirar um curso superior. João de Castro e Orlando Araújo trabalham numa bomba de gasolina e saem todos os dias de um dos campos geridos pelas freiras Canossianas para ver se a bomba está aberta, para conseguir o dinheiro de um dia de trabalho. "O pior é que desta vez, pela primeira vez, os conflitos foram entre timorenses", diz Orlando Araújo, que aponta para um helicóptero australiano, a patrulhar do ar a segurança na capital timorense. "Olhe para aquilo!" exclama. "É a nossa vergonha, será que não conseguimos tomar conta sozinhos do nosso país?" Já com a carga colectiva de duas décadas de ocupação indonésia e com os traumas dos confrontos e da destruição quando as forças de Jacarta abandonaram o país, para os habitantes de Díli tão rápido não vai ser possível esquecer os últimos 10 dias de balas e fogo. Na esquina onde, na passada quarta-feira, seis polícias desarmados morreram às mãos de um grupo de militares das forças armadas, ardem ainda no meio da estrada velas pelas suas almas, pelos seus espíritos. Uma homenagem feita só com estas pequenas luzes, as únicas que brilham na noite do bairro de Caicoli, e uns ramos de buganvílias, que basta arrancar das árvores. Flores dos pobres, grátis, no país mais pobre da Ásia. Quando as flores e as velas desaparecerem, Díli poderá, talvez, começar a esquecer. Lusa/Fim
1 comentário:
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